O debate sobre Ética em Thelema




 

“Faz o que tu queres deverá ser o todo da Lei” (AL, I, 40). A partir desse princípio, alguns thelemitas entendem que seria necessário negar a ética/moral enquanto teoria normativa da ação. Por conseguinte, alegam que Thelema seria um niilismo ou ceticismo ético/moral. Com este artigo, dou prosseguimento ao debate iniciado por Frater Hoor aqui no blog da Abadia, valorizando o diálogo entre os sinceros buscadores. Seguindo o rastro de trilha do irmão, reforço a refutação das interpretações céticas e niilistas, pois tais perspectivas são contrárias à Lei de Thelema e aos preceitos dos Liber de Classe A, que exigem um compromisso ético.

 

Para esta discussão específica, considero as palavras ética e moral como sinônimas, pois ambas têm raízes etimológicas na palavra “costume”, ethos (grego) e morus (latim) respectivamente. O sentido filosófico geral de ética/moral é a compreensão do agir humano, da conduta dirigida ou disciplinada por normas ou costumes, discutindo-se como a conduta humana deve ser orientada e quais são os meios para se atingir tal fim.

 

O ceticismo moral/ético argumenta que não se pode fundamentar a ética ou a moral, pois os argumentos a favor de qualquer moralidade poderiam ser neutralizados ou refutados por outras perspectivas igualmente convincentes, de modo que não temos justificativas para seguir qualquer lei ou proposição moral. Nesse sentido, o cético prefere suspender o juízo e escolhe não se pronunciar, abstendo-se de negar ou afirmar. Nem mesmo a Lei de Thelema poderia ser afirmada.

 

O niilismo moral/ético, por sua vez, ao afirmar a falta de sentido da vida e do mundo também acaba projetando a ética e a moral como carentes de sentido e valor. Logo, consideraria a Lei de Thelema infundada e desprovida de significado.

 

Sem qualquer parâmetro a presidir sua escala de valores e orientar suas ações, o niilista moral e o cético moral são marcados pela inércia, pela imobilidade e paralisia da vontade. Logo, o niilista e o cético não podem ser autênticos buscadores no caminho thelêmico.

 

Um debatedor poderia citar o Liber ABA (parte II, capítulo VI), que indica um conflito entre o desenvolvimento da Vontade e o conceito de ética, pois este seria apenas a expressão social do hábito, isto é, da tradição e dos costumes. Também poderia recordar o Livro de Thoth, que entende a raiz da responsabilidade moral como restrição. Nessa perspectiva, os hábitos que mais restringem nossa sociedade são oriundos da ética/moral judaico-cristã do Velho Aeon, que segue a máxima “Seja feita vossa vontade”, isto é, prega a rendição da vontade individual à vontade de Deus, compreendido como uma entidade suprema que personificaria a ordem do Universo.

 

Ora, se “a inércia natural da humanidade quer uma religião e ética já prontas”, como advertiu Crowley na segunda das Oito palestras de Yoga, sair da inércia não significa ser niilista ou cético moral. O buscador deve “quebrar qualquer hábito, simplesmente para se libertar desse tipo de escravidão” (ABA, II, VI), pois se estou certo de minha Vontade, e certo de meus meios, então quaisquer pensamentos ou atos que contrariam esses meios contrariam também a minha Vontade.

 

A liberdade, poder de dirigir meu curso de acordo com minha Vontade, banindo o que me escraviza, é a minha primeira necessidade. Todavia, isso não significa ceticismo ou niilismo. Como ser livre para agir sem conhecer e afirmar o meu próprio propósito? “Não há lei além de ‘Faz o que tu queres’” (AL, III, 60).   

 

Ora, a Lei de Thelema é o critério fundamental de juízo e avaliação moral/ética do thelemita. Ainda que não sejam pré-determinadas regras de conduta e mandamentos – pois é a partir do cultivo de si e da autonomia que o buscador deve poder reconhecer sua verdadeira vontade – estamos longe de um niilismo ou ceticismo.

 

Thelema é um sistema ético/moral baseado na autonomia e na soberania individuais, pois o autônomo é aquele que provém a si próprio a lei de sua ação e o soberano é aquele que tem segurança suficiente de não precisar dominar o outro para se defender, porque nenhuma vontade de domínio vinda do outro poderá lhe submeter.

 

Cada thelemita deve descobrir sua verdadeira vontade e superar os ordálios que impedem a realização de sua Grande Obra – sem imitar os costumes alheios, sem se escravizar em nome dos costumes impostos por terceiros, mas com o compromisso ético da compreensão do agir humano. Cada um de nós é um universo e nós devemos descobrir qual estrela somos dentre todas as estrelas, nossa relação com as outras estrelas e a nossa relação e identidade com o todo.

 

Com autonomia e soberania, o thelemita pode seguir os valores éticos/morais de Vida, Luz, Amor e Liberdade, quatro raios ou emanações que surgem se fazemos da Lei o centro do nosso ser. Conforme o Liber CL, com Liberdade temos o poder de dirigir nosso curso de acordo com nossa Vontade; com Amor participamos da natureza da Vontade Universal e reconhecemos o outro – o irmão e a irmã – como liberdade, isto é, como ser irredutível e autônomo, com quem eu não me confundo, mas me encontro; por todo ato de Amor sob Vontade estamos criando Vida – a dádiva da Lei de Thelema; a Luz é análoga à vontade, um êxtase informe e sem marco ou limite.

 

“Amor é a lei, amor sob vontade” (AL, I, 57)

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