Ética em Thelema
Ética em Thelema
Um estudo sobre Ética e ideias de Moral, Imoral e Amoralidade
no caminho Thelêmico.
“Faze
o que tu queres não é faz o que quiseres” Liber II
O presente estudo tem como
finalidade expor um pequeno, porém potente rastro de trilha sobre a ética no
caminho Thelêmico, pelo motivo simples de já alguns anos na senda não encontrar
tal material em português, após estudar as evidências, ter formado não só uma
posição como serve esse texto, como também provocar e até criar nesse artigo um
ponto de debate àqueles propícios ao debate, e um ponto de atrito aos que estão
enganados e/ou enganando. Obviamente que devemos trabalhar alguns aspectos de
curva e de fora da curva, afinal, trata-se de uma ética “Thelêmica”, assim
mesmo que fora da conceituação clássica de ética com seus anteparos morais e
sociais tal qual sua definição abaixo:
substantivo feminino
1.
Parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam,
distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo esp. a
respeito da essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em
qualquer realidade social.
2.
POR EXTENSÃO
conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um
indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade.
Thelema parece bagunça, mas não é
- esse seria um lindo subtítulo do texto, mas apresentamos as dicotomias da
metamorfose ambulante (vulgo Crowley). Assim logo de princípio vemos em
comentário do próprio Crowley o caráter libertário de Thelema em relação ao
tema como um conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa de moral:
"comentário
novo” para AL II, 28:
“Não
há ‘normas de direito’. A ética é uma calvície. Cada Estrela deve ir em sua própria
órbita. Para o inferno com ‘princípio moral’; não existe tal coisa.”
Aqui começamos a ver de certa
forma como de fato Thelema em nada se coaduna com as ideias de moralidade ou
imoralidade, tendo sua base dentro da ideia da Liberdade em contraste ao
caráter consciente de controle de princípios ou reflexões de moralidade ou
imoralidade, tal Liberdade em si que contém em seu espírito a máxima da
Amoralidade:
“adjetivo de
dois gêneros
1.
moralmente neutro
(nem moral, nem imoral); que não leva em consideração preceitos morais;
estranho à moral.”
2.
ÉTICA
que se mantém exterior ao julgamento ou qualificação moral, como, p.ex.,
o animal irracional ou, em circunstâncias frequentes, a infância ou a loucura,
em contraste ao caráter consciente e refletido da imoralidade.”
Refuto a ideia que Thelema seja
Niilista moral ou do Ceticismo moral. Aqui começa uma certa torção de realidade
por conta de alguns Thelemitas, porém me parece, ou falta de leitura ou pura
desonestidade intelectual; em termos de sociedade já foi moralmente aceito
queimar bruxas, segregar negros, perseguir judeus, isto é ético? Isso é
"cumprimento de Vontade" para quem?
Posso estar sendo tendencioso?
Claro, mas note que não estou vendendo nada, digo isto pela quantidade de
ensaios em que Crowley se debruça, daí em diante em Libri, ensaios, práticas,
textos e comentários de versos do Livro da Lei, principalmente norteando certos
valores muito caros a ele, que na visão dele representa os pilares que de certa
forma e nas palavras dele “brotam da Lei” - Luz, Vida, Amor e Liberdade.
“[Law (Lei), Liberty (Liberdade), Love
(Amor), Life (Vida), Light (Luz).]” - Liber CL
vel נעל
- Uma Sandália De Lege Libellum L – L – L – L - L
“Mantenha
puro seu ideal mais elevado; esforce-se sempre em direção a ele, sem permitir
que nada te impeça ou te desvie, assim como uma estrela se move em seu curso
incalculável e infinito de glória, e tudo é Amor. A Lei do teu ser se torna Luz, Vida, Amor e Liberdade. Tudo é
paz, tudo é harmonia e beleza, tudo é alegria.” - A LeI da Liberdade Liber
DCCCXXXVII - Um Folheto de Το Μεγα Θηριον 666 que é um Magus 9○=2□ A∴A∴
Assim, começo com o primeiro marco
divisório ou ponto de referência ético em Thelema - A Vontade que se coaduna e
se potencializa na Lei. E mais uma vez Thelema não é bagunça, parece, mas não
é. A Estrela se move livre em seu curso auspicioso dentro do Universo que é
Luz, Vida, Amor e Liberdade, então, além de se tratar de uma “baliza ética”
enquanto universal é de fato uma trilha que sinaliza um bom caminho de yama e
nyama[1] (ops
mais um preceito ético). Para aqueles que praticam o que está prescrito no
Liber Aba cap. 3, isso pode vir a se tratar de um direcionamento, um farol, um
landmark, ou até um padrão vibratório que podemos entender como a Lei, a
vontade do freguês. Dentro deste aspecto vemos que o Liber II nos traz:
“Considerai isto cuidadosamente; parece insinuar uma
teoria de que, se todo homem e toda mulher fizesse a vontade dele ou a vontade
dela – a real vontade – não haveria conflito.” ‘Todo homem e toda mulher é uma
estrela’, e cada estrela, move-se numa órbita determinada, sem interferência.
Existe lugar para todos; é apenas a desordem que causa confusão.”
“Destas considerações deve tornar-se claro que ‘Faze o
que tu queres’ não quer dizer ‘Faze o que quiseres’. A Lei é a apoteose da
Liberdade; mas é também a mais estrita das injunções.”
Uma breve
análise gramatical, vemos em língua inglesa “Do what you like”, algo como “faça
o que gosta”, o que lhe apraz e até o que quiseres. Notem que nesta última
tradução que é a usada pelo Marcelo Motta, nós temos de maneira proposital a
ausência do sujeito, tornando-o oculto, o que denota uma ação passiva, logo
assim, diferente da ação da estrela que percorre a órbita exercendo a sua
vontade, ativa e altiva. A mesma ideia é expressa se usarmos a sentença “Faça
como gostas” esse gostar denota uma situação egóica, logo, portanto finita e
temporal diferenciada do caráter “daquilo que resta”. De todo o modo, a leitura
continuada dos libri supra citados nos dão um bom roteiro prático de alcançar
esse “estado de observação consciente” de viver a Apoteose e a mais estritas
das injunções, ou seja, a inclusão entre os deuses, ou a deificação juntamente
com a ordenação precisa, expressa e formal, impositiva, coercitiva e social -
fácil?
E assim, percebemos que Motta, o
pioneiro tanto da tradução quanto da divulgação da lei de Thelema no Brasil,
buscou dar à sua tradução um certo sentido místico, estético e ético, dentro do
entendimento do mesmo. Muito galgado em
duas fontes bastante substanciosas que ele estudou profundamente a vida toda:
Os comentários do Livro da Lei (The Commentaries of Al) e Magick sem Lágrimas
(Magick without tears).
Há uma interessante passagem no
segundo capítulo do Livro da Lei, onde Hadit aponta caminhos para a Razão e a
amaldiçoa como produto ético, moral, intelectual de maneira social, afinal, a
Vontade extrapolada enquanto poder natural não estaria submetida a salvaguardas
morais ou contaminação de um pensamento lógico, inclusive Crowley comenta que
na esfera individual é essencial que o Thelemita tenha essa relatividade de
valores morais e éticos como veremos a frente. Afinal, Liberdade e Felicidade
precisam de espaço, não há o que se conter nesses aspectos.
É
lugar comum afirmar que o Aspirante à Thelema é aquele que faz sua própria
vontade e permite que outras pessoas a façam. Na complexidade do mundo, não há
um ditador nem seguidor de regras, a regra é Ir - “Se reconheça como o centro
do seu próprio universo”[2],
este segue a sua própria lei e outros seguem as suas próprias leis, diferentes;
não há ideais universais de “o que é melhor” ou “o que é absolutamente certo e errado”
além deste, nesse ponto, aquele que esconde violências físicas e psicológicas,
preconceitos e fetiches sob o manto de Thelema, está enganado e enganando. E um universo só é verdadeiro com a
multiplicidade de estrelas: uma andorinha não faz verão e um sol auto centrado
é somente um incêndio na solidão. Isto é o que às vezes é chamado de “Yama e
Niyama de Thelema” e aqui entramos num outro ponto chave em que Crowley comenta
bastante, a violência!
Tanto
o Livro da Lei quanto alguns outros escritos basilares de Thelema possuem clara
alusão a violência talvez sendo Liber Oz em seu quinto verso o mais famoso:
“5. O Ser Humano tem o direito de matar aqueles que queiram
contrariar estes direitos.”
Resumindo
e contextualizando, Liber Oz trata-se aparentemente de uma declaração de
direitos humanos na visão Thelêmica. Levando a máxima do quinto verso há uma
curta reflexão: todos sabemos quem são os únicos e responsáveis contrários aos
nossos direitos à Vontade, à Liberdade de cada estrela? Pois é, não se trata de
suicídio.
Em
seu maravilhoso comentário do verso 51, capítulo 1 de Liber Al, Mestre Therion
nos brinda com essa pérola de ética:
“‘Como
quiserdes’. Deveria ser abundantemente claro das observações acima, que cada
indivíduo tem direito absoluto e inatacável de usar seu veículo sexual de
acordo com o seu próprio caráter, e que é responsável apenas por si mesmo. Mas
não deve injuriar seu direito e a si mesmo; atos que invadam o igual direito de
outros indivíduos são implicitamente agressões contra nós mesmos. Um ladrão não
pode se queixar na base de princípios teóricos se ele mesmo é roubado. Atos
como o estupro, e o assalto ou sedução de menores, podem, portanto, ser
justamente considerados como ofensas contra a Lei da Liberdade, e restringidos
no interesse daquela Lei.”
“Exclui-se
também de ‘como quiserdes’ o ato que comprometa a liberdade de outra pessoa
indiretamente, como quando alguém toma vantagem da ignorância e boa-fé de outra
pessoa para expor aquela pessoa à constrição de doença, pobreza, ostracismo
social, ou gravidez, a não ser com a bem informada e não influenciada livre
vontade daquela outra pessoa. (...) O único crime no cosmos é a colisão.”
Isso
nos deixa confortáveis o bastante para prosseguir dentro deste aspecto ético
onde as fontes da Lei, como disse anteriormente, são balizas. Agora passaremos
a uma abordagem ética na prática espiritual e isso ocorre em dois libri
essenciais Nu e Had.
“3. Evita qualquer ato de escolha ou de
discriminação.”
“Esta
é a primeira prática de Ética (ccxx, I. 22).”
“8. Que o Aspirante reverencie ao máximo
a Autoridade da A∴A∴ e siga Suas instruções, e que ele preste um grande
Juramento de Devoção a Nuit.”
“Esta
é a segunda prática de Ética (ccxx, I. 32).”
“9. Que o Aspirante fique atendo ao
menor exercício de sua vontade contra outro ser. Desta forma, deitar-se é uma
postura melhor do que sentar ou ficar de pé, pois opõe menor resistência à
gravidade. No entanto, seu primeiro dever é para com a força mais próxima e
mais potente; por exemplo, ele pode se levantar para cumprimentar um amigo.”
“Esta
é a terceira prática de Ética (ccxx, I. 41).”
“10. Que o Aspirante exerça sua vontade
sem a menor consideração por qualquer outro ser. Essa orientação não pode ser
entendida, muito menos realizada, até que a prática anterior tenha sido
aperfeiçoada.”
“Esta
é a quarta prática de Ética (ccxx, I. 42, 43, 44).”
“12. Que o Aspirante viva a Vida de
maneira Bela e Agradável. Pois esta liberdade ele conquistou. Mas que cada ato,
especialmente de amor, seja inteiramente dedicado à sua verdadeira amante,
Nuit.”
“Esta
é a quinta prática de Ética (ccxx, I. 51, 52, 61, 63).”
Os libri Nu e Had embora sejam em classe D, isto é:
rituais e instruções oficiais da ordem que não se nomeiam, são para os
vencedores do Ordálio X. Sem entrar no mérito da questão, estes libri podem ser
trabalhados em qualquer tempo, porém são currículo do Dominus Liminis, ou seja,
aquele que exerce (ou tenta pelo menos) o senhor do seu limiar e, ou dos seus
umbrais e nesse ponto de vista é imprescindível: a prática ética da Asserção do
ponto de vista de Kether ou qualquer referencial próprio; reverência à Ordem e
a estrutura que dela emana; abolição da vontade humana ou desejos temporais;
exercícios da verdadeira vontade, o mínimo que o aspirante entenda disso; e,
devoção à Nuit através de uma vida tornada bela, ao máximo que o aspirante se esforce
nisso, ou então em Liber Had temos: A destruição de toda indignidade em si
mesmo e em seu entorno, ou seja, aplicar a fórmula do cap. 3 de Liber Al, a
Plenitude, mesmo o pouco que ele se entenda como a chama que arde em cada
coração: a quase violência de Ra Hoor Khuit contra aspectos cristalizados, de
vida como potência e como Lei. Sem tais práticas de ética com os devidos versos
de Liber Al dando subsídio, o Dominus Liminis terá uma enorme dificuldade de
acender sua lâmpada mágicka.
Assim finalizamos expondo que o vínculo mais estrito que existe é também a Liberdade que se manifesta na Vontade. Não há dicotomias num plano moral ou imoral, porém Thelema respeita e se aproveita de seu plano ético que baliza e proporciona a força de impulso sobre a inércia. Ainda estão pensando que Thelema é bagunça?
Força e fogo são de nós.
Referência Bibliográfica (exceto os libri supra
citados):
MIZANZUK, Ivan Alexandre. "Faze
o que tu queres": as noções de ética e moral nos escritos de Aleister
Crowley em sua Thelema sob a luz da sociologia sensível de Michel Maffesoli.
HESSLE, Erwin. The Ethics of Thelema
MORGAN, Mogg. The
Heart of Thelema: Morality, Amorality, and Immorality in Aleister Crowley’s
Thelemic Cult. Published 2013.
IAO131. The Philosophy of Thelema, pt.3: Ethics.
[1]Os yama e niyama são os primeiros dois angas dos ashtângas e são os preceitos éticos estabelecidos no Yoga Sutras de Patanjali.
[2]O Dever - Aleister Crowley
Ótimo texto! Para mim, a construção de uma ética thelemica passa inevitavelmente por um entendimento dos conceitos de pecado/ restrição expostos na doutrina, bem como pelo entendimento de quem são os escravos citados em Liber AL. Por isso se há niilismo e/ou ceticismo em thelema seriam mais por sua perspectiva ativa de potência construtiva/ criação, do que pelo caráter negativo vinculado a esses nomes. Pois sendo os nossos pilares: Luz, Vida, Amor e Liberdade, não há como negar o caráter libertário da nossa Lei e assim sendo, nenhum ser de natureza restritiva teria parte com ela. Ora, por isso que fazer a sua Vontade pura e simplesmente, não significa ser thelemita, pois existem vontades más, que se aglutinam em torno de pulsões de morte, ódio, discriminação etc. Por isso, não acredito em thelemitas de direita, ou conservadores, ou fascistas... Simplesmente, não são thelemitas.
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