Tédio: fruto da inércia e alimento da dispersão
Faze o que tu queres há de ser tudo
da Lei.
Aspirante,
O
caminho que escolhemos certamente é uma trilha que, mesmo para ser iniciada,
requer força de vontade, uma palavra tão valorizada entre nós, Thelemitas.
Escrevo com o honesto desejo de esclarecer algumas questões que percebi em mim
no início do caminho e que percebo frequentemente em meus irmãos mais novos.
Desde
o início somos alertados dos perigos da dispersão e da inércia, das ordálias e
da importância da persistência, não é como se não soubéssemos de tudo isso, mas
durante um ano, por exemplo, podemos variar
constantemente, perdemos o senso de direção, nos sentimos desmotivados pois
mesmo com tanta entrega, nada de muito especial parece acontecer, a constância
nas práticas parece perder o significado, o deslumbre inicial começa a
desaparecer, a estátua que você erigiu está desmoronando lentamente, pois sem
perceber, a construiu em um terreno íngreme.
O
caminho é duro, frio e escuro. É nossa luz que pode ser vista iluminando o
trajeto e embelezando a paisagem; é o fogo do sol interior que nos aquece na noite
escura que antecede o inevitável esclarecimento.
O
trajeto requer disciplina. Creio que essa é a primeira percepção a ser
vivenciada pelo aspirante, pois o próprio caminhar nos ensina isso, e a
vivência é parte crucial do trabalho na Santa Ordem. Note que todo o processo
tradicional de testes que podem ser experienciados em uma ordem mais
convencional é aqui substituído por sua própria vida, por inteiro. O processo
envolve não apenas seus estudos ou práticas, mas todo e qualquer evento que
surge pode ser um degrau no caminho do autoconhecimento. Tudo é uma questão de
ponto de vista, de saber utilizar os infortúnios a seu favor. Começa aqui um
trabalho que geralmente chamamos de percepção, mas que gostaria de utilizar o
termo perspectiva, no sentido de diferentes ângulos, diferentes pontos de
vista.
Estamos
diante de um inimigo assim que iniciamos a busca. Suas armas são ardilosas,
sempre se renovando, sempre afiadas e prontas para nos derrubar. Estamos
sozinhos durante a maior parte do trajeto e vemos apenas uma estrela à vista.
Ainda que distante, ela declara nossa aspiração.
Um
primeiro apontamento que gostaria de fazer sobre nosso “inimigo” é que ele é
sempre interno: chama-se ego. O trabalho na Santa Ordem é um trabalho
totalmente pessoal e tudo que for experienciado deve ser interpretado através
de uma perspectiva interna. Um segundo apontamento seria que, na realidade, o
ego não é um verdadeiro inimigo. Mais uma vez, essa é uma questão de
perspectiva.
Quando
adentramos na senda, ainda no início, nosso ânimo com a resposta ao nosso
pedido para nos tornarmos estudantes é inflamado como nunca antes — pelo menos
assim foi para mim. A lista enorme de livros me pareceu uma oportunidade de
aprendizado e, após o juramento ser assinado e a prática escolhida, ficamos
ainda mais empolgados. As primeiras semanas de práticas são sempre muito
intensas, mas algo acontece no caminho. Tenho certeza de que todo aspirante
sabe do que estou falando até certo nível, pois o que percebi em mim e em
muitos é exatamente um desgaste após as primeiras semanas e meses, um desgaste
que tem origem no próprio processo e que se apresenta como tédio.
Vamos
falar então sobre essa manifestação do inimigo: o tédio. Algo que se torna
muito frequente em qualquer rotina e que muitas vezes pode assustar o
iniciante, que espera que o seu trajeto seja preenchido diariamente de
experiências místicas e emocionantes. Perceba que o tédio que se manifesta é um
primeiro sinal de sucesso, mas que esconde em si a primeira falha na trilha da
persistência. Sucesso, pois o tédio é um sinal de estabilidade, se for fruto de
certa constância. Um oceano tranquilo de se navegar é tedioso, mas qual seria a
melhor forma de navegar se não em um mar tranquilo? Obviamente precisamos dos
ventos para navegar. Daí vem o dilema que enfrentamos com o tédio: se o caminho
não nos emociona, logo perdemos o interesse no destino, até nos esquecemos de
que estávamos em sua procura, e assim o trajeto logo é auto sabotado. É preciso
um senso de dinâmica no caminho e se as práticas são o que são, a melhor forma
de se lidar com isso seria, mais uma vez, mudar a perspectiva sobre o que está
sendo realizado. Acredito que a partir do momento que deixamos escapar o que
nos trouxe até aqui, nossa aspiração, começamos a nos perder, estamos sem
norte. É preciso se lembrar diariamente do propósito das práticas, para que
elas não se tornem uma repetição vazia e monótona.
Esse
tédio vem da ideia de que as práticas que nos são apresentadas vão despertar
algum estado alterado de consciência, alguma súbita iluminação. É preciso
observar os resultados da constância
do Resh, por exemplo, não apenas em sua execução, mas também em como isso
reflete em sua vida, em como você lida com as forças opostas que surgem assim
que começamos a caminhar. Não existe nada de monótono no percurso se você andar
com firmeza, os desafios internos vão trazer toda a emoção necessária na
jornada.
Se
o trabalho do Probacionista envolve exatamente ser testado e lhe é dada a
tarefa de executar diariamente uma prática, temos aí uma tarefa que possui como
tema a persistência. Essa é a chave que deve ser utilizada para lidar com os
testes que serão apresentados. Essa é a resposta para lidar também com o tédio
que surge, pois ele vem da perspectiva errônea do que vai acontecer durante o
processo. Minha impressão é a de que com a própria repetição, o aspirante se
esquece do propósito de suas práticas e logo começa a não ver mais sentido no
que está fazendo, logo começa um processo que alimenta a sua dispersão, pois na
busca por algo mais emocionante, começamos então a procurar complementos para
nossa prática, procuramos outros sistemas, tradições, ou até mesmo começamos a
explorar práticas da Santa Ordem que não fazem parte do nosso grau. Aqui não
estamos mais inertes, mas dispersos. Estamos andando, mas em direção alguma!
Esquecemos que para cada porta existe uma chave apropriada e que a porta atual
não exige nada disso, exige somente persistência. A simplicidade da tarefa é
também sua maior armadilha.
Lembre-se
do que falamos anteriormente: o processo dentro da Santa Ordem ocorre dentro de
sua própria vivência. Apenas buscando viver a Lei é que podemos começar a
compreendê-la. Portanto, observe a dinâmica que você precisa exatamente na
execução de suas tarefas, no tempo que dispõe para praticar, nos obstáculos que
surgem no caminho, nas suas quedas e reerguidas, perceba o fantástico na
superação de suas dificuldades, observe o espírito superando a matéria no
momento em que você direciona sua vida para a Grande Obra. Esses são os sinais
de resultado em sua prática. Não espere que o caminho já se inicie com os céus
se abrindo para você ou com uma revelação de sua Verdadeira Vontade. A única
“revelação” que pode ser esperada como resultado enquanto Probacionista é o
conhecimento científico da Natureza e dos poderes do seu próprio ser, e esse
“evento” também não possui nenhum caráter fantasioso, mas se trata de uma nova perspectiva obtida através da mudança
fundamental, mantenha isso em mente e descarte qualquer outra expectativa se
não quiser se frustrar e perder tempo.
O
Ego busca conforto. No momento em que o ego se sente pressionado, ele vai
utilizar os melhores artifícios possíveis para te convencer a se desviar e a
aliviar a pressão. Ele conhece suas falhas como ninguém e assim deve ser o
inverso: conheça as armas que ele possui, aprenda com seus golpes a melhor
maneira de desviar. Observe o seu trabalho enquanto Probacionista dessa
maneira, aproveite o seu diário para registrar e refletir sobre suas
dificuldades, trace metas, encare os percalços mais difíceis do caminho como
uma oportunidade de crescimento. Reflita sobre o conceito da Mudança
Fundamental, leia e releia “Passando do velho ao Novo Aeon”, nossos irmãos mais
velhos já abordaram todos estes temas antes. Perceba que temos sempre a opção
de lidarmos com o que surge em nosso trajeto da maneira como bem quisermos, não
existe lei além de Faze o que tu queres. É exatamente em nossas escolhas diante
das dificuldades que plantamos a semente do que iremos colher em nosso trajeto.
Cada
dificuldade, desafio, ordália que se apresenta deveria ser bem-vinda, como uma
rosa carregada de espinhos, que nos ensina através do tato e da visão como a
manusear. Seus espinhos apenas são; sua beleza apenas é. Caso você saia ferido
ao tocar na rosa, o descuido foi seu. Da próxima vez que receber uma rosa, você
vai se lembrar dos espinhos e poderá apreciar tranquilamente sua beleza (ou vai
se ferir novamente, até aprender). Encare então todos os desafios como testes.
Dessa forma, mudamos a perspectiva sobre nosso “inimigo”, passamos a entender
os seus motivos, criamos empatia por nossa trajetória, sem autoindulgência,
descobrimos no “adversário” um porta-voz do guia, não um inimigo, mas um aliado
que irá nos acompanhar nessa jornada. Não esqueça que Probacionista não é um
termo vão. Você será testado em seu caminho. Não veja isso como uma
romantização do sofrimento, mas sim como uma exaltação da vitória. Sucesso é
tua prova.
Amor é a lei, amor sob vontade.
Frater Yod
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