Deslumbramento: um agente contra-iniciação


 


Escrevo mais uma vez aos probacionistas e àqueles que estão com o propósito de iniciar seu percurso na Santa Ordem. A maioria dos meus textos endereçados a esse público, parte de observações que faço de instruídos e instruídas, irmãos e irmãs de linhagem, e também do que vejo publicado nas redes sociais. Não são à toa e nem por mera especulação. 

 

Quem me conhece sabe o quanto bato na tecla sobre as armadilhas do deslumbramento no trabalho espiritual na A.A. Posso afirmar que não há ninguém, ninguém mesmo, que em algum momento, não tenha se esbarrado com o deslumbre, portanto, o objetivo deste ensaio é destruir os castelinhos de areia construídos sobre o deslumbramento.

 

“Meus adeptos se mantêm erguidos; suas cabeças acima dos céus, seus pés abaixo dos infernos.” (Liber Tzaddi, v:40)

 

Sempre pego no pé dos meus instruídos e instruídas sobre focar nas tarefas e práticas do próprio grau. Não é uma tentativa de restrição, longe disso, mas por ausência de uma aplicação adequada ao momento em questão. Entretanto, se ater às práticas ou assuntos que nada acrescentam ao propósito do grau, se torna perda de tempo, pura dispersão, e ainda faz com que o(a) Aspirante deixe de executar e estudar, o que realmente importa. E é o que geralmente acontece.

 

Por exemplo, canso de ver probacionistas realizando o Liber Samekh, citando consecuções aleatórias do Crowley no diário mágicko como se fossem suas, crentes que estão “abafando”; e ainda se sentem afrontados quando dizemos não ter serventia alguma, senão para matar a curiosidade. Me deixa ainda mais intrigada observar “simpatizantes”, estudantes e probacionistas falando com tanta propriedade sobre o Sagrado Anjo Guardião e a Verdadeira Vontade, sem sequer saberem qual a Natureza e o Poderes do seu Próprio Ser, muito menos, qual a “ Visão do SAG (ops, boa provocação, né? ‘risos’), “a Visão da Maquinaria do Universo”, “a Visão do Esplendor”, “a Visão da Beleza Triunfante” (…) resumindo: sem de fato terem iniciado o trabalho iniciático.

 

 

Confesso que não consigo entender tamanha ânsia de resultado, isto é, tanta necessidade de querer burlar um Sistema Mágicko, que foi delineado de modo que o(a) Aspirante galgue seu (auto)conhecimento ao ajustar o seu nível de consciência ao trabalho iniciático proposto em cada grau. Veja bem, se fosse tão fácil assim, o Sistema poderia ser otimizado em apenas dois graus: probacionato e neofitado. Afinal, os restantes seriam para quê? “Hobby”? É só parar, e raciocinar!!! Consegue perceber a armadilha chamada “deslumbramento”?

 

Infelizmente, esse perfil comportamental é bastante recorrente: se der “corda”, o ego infla, sai atropelando, cheio das razões, e por fim, se perder na ilusão do “sei tudo”, do “posso tudo”, e se enforca antes de chegar em seu objetivo. Logicamente, isso evidencia a defesa do clichê “eu faço o que eu quero”; ou mesmo “por que não posso saber mais do que o(a) meu(minha) instrutor(a)? Ou ainda rola aquela “carteirada”: “sou grau 33 da Maçonaria”; “Sacerdote do Círculo Mágico sei lá das quantas”; “Babalorixa do Ilê não sei o quê”. Care Aspirante, saiba que o Papa iria começar como probacionista, quiçá como Estudante dos Mistérios, e iria passar pelas mesmas dificuldades e desafios que todos nós passamos, ele é humano. Claro, cada caso é um caso, mas aproveito para deixar uma reflexão: o seu objetivo seria o trabalho espiritual ou saciar a carência do ego?  

 

Como muitos não sabem, graus não são hierarquias, mas diferentes tipos de trabalho, cada qual atuando em uma camada de consciência, e possuindo um currículo básico, bibliográfico e de práticas, associado às atribuições do referido grau. O probacionato é um grau no qual o candidato será testado quanto a sua aptidão em se tornar neófito, isto é, iniciar a sua jornada iniciática. O ordálio central do(a) probacionista é a dispersão, e ele(a) terá o tempo todo que provar a sua persistência. O objetivo deste grau não é realizar um trabalho iniciático que possa aflorar determinados padrões da personalidade que permanecem latentes. Em virtude disso, o(a) probacionista ainda não conseguirá acessar o seu “ponto fraco” de maneira mais apurada. Sendo assim, por que e para quê, atuar com práticas de graus mais avançados, para amenizar, quebrar ou transformar algum padrão que nem se conhece? Ou mesmo, para obter consecuções, que seu nível de consciência não está pronto para alcançar? 

 

Quer ver mais um exemplo: como “pegadinha”, gosto de perguntar ao probacionista em fase final do grau, se ele(a) já adquiriu todas as armas mágickas para realizar o Ritual do Pyramidos. Nem um pouco é raro escutar: “ainda não, Soror, você pode me dar dicas de onde conseguir?” Não deixo de expressar uma boa risada e questionar logo em seguida: “se o ritual será realizado em viagem em visão do espírito, você precisaria realmente dessas armas? O que seriam essas armas?”

 

Dentro deste contexto, sem saber o real significado de cada arma e como isso reflete em você, na sua psiquê e no seu corpo, elas não passarão de uma bela decoração. Se você ainda não leu o Liber ABA, parte II, corre lá que vale a pena!

 

Veja, que mais uma vez, fica nítido que o intelecto, que inúmeras vezes se mostra sagaz (principalmente nas redes sociais), peca, quando há a necessidade de abaixar a bola para poder apreender coisas extremamente simples. O intelecto é um complemento essencial, mas não é o que direciona o desenvolvimento mágicko-espiritual. Já a percepção, sim, sobretudo, das coisas mais singelas e corriqueiras. Dela se originam os “links” necessários para alcançar as consecuções.

 

No decorrer da jornada, mesmo no Probacionato, as consecuções podem acontecer de diversas formas, seja como consequência de um simples trabalho de percepção aplicado ao treinamento, seja através de um processo de gnose proveniente de alguma prática ou ritual mágicko. Ou mesmo, de uma mudança de chave inesperada, que pode acontecer, de repente, num metrô lotado, no horário de pico, quando, ao reparar em coisas inusitadas, surge um insight que te faz entender, por milésimos de segundos, o que Te conecta ao objetivo do seu grau, ao ordálio que precisa superar, ou, te traz a tão ansiada resposta que te fez perder várias noites de sono queimando a “mufa”. Por outro lado, sabe aquele objeto que você perdeu e só foi encontrar quando procurava por outro? Tipo isso! Perceba que estou tentando colocar em palavras onde o intelecto não alcança. E as consecuções que nos levam às iniciações, são bem assim, sem descrições plausíveis.

 

Esse Sistema de tão simples se torna extremamente confuso e desesperador aos que não estão dispostos a quebrar as ideias fixas, e desapegar das ilusões que o ego produz sobre a própria “persona”. Tudo, neste plano de discos, está em constante mutação e ninguém pode controlar isso! Sem ceder às desconstruções (sim, no plural) do ego, não há trabalho espiritual e nem porquê realizá-lo. Seu maior adversário é você! Só você!

 

Diante disso, reitero, que o deslumbramento quando descontrolado, cega, e portanto, se torna um agente contra-iniciação, que cria uma ilusão de grandeza, status ou poder, muitas vezes sem volta, sabotando todo o processo vivenciado, isso se, realmente existiu algum processo, senão o egóico. É da natureza humana se encantar com novidades, e com tudo que gera a esperança de obter boas recompensas, e o mesmo acontece com o(a) Aspirante em relação às consecuções que alcança, ademais, se torna sabedoria perceber quando recolocar o pé no chão e seguir. Além disso, o tempo é o fator mais precioso que temos na vida: ninguém quer perdê-lo, e por que perdê-lo logo por deslumbre e capricho?

 

Em síntese, a filosofia de Thelema é muito sedutora quanto a sua promessa de liberdade, de poder ser e expressar quem se é, ou deseja ser. Contudo, essa proposta incentiva propagandas imediatistas que ao distorcerem o conceito de “Vontade", encobrem e/ou camuflam a veracidade do processo mágicko-espiritual: uma jornada para a vida toda, nenhum pouco fácil e aventuresca, que ao contrário do que pareça, exige muita dedicação, responsabilidade e, principalmente, sobriedade. Romantizar este processo é um subterfúgio dos que temem encarar a realidade dos fatos, de encarar a Si mesmo, de encarar as próprias restrições. O que seria a liberdade, sem conhecer e experienciar a sua própria carceragem?

 

Por fim, fica uma dica: “Faze o que tu queres”, é um produto que vende bem, e tenho visto muita oferta na “Shopee”. Se eu fosse você, pensaria duas vezes antes de adquirir, viu?!?

 

Soror Ignis


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