Aquilo que permanece

 




Este texto é destinado àqueles que por algum tempo têm se aprofundado nas práticas do caminho, dissolvendo couraças e também acumulando dúvidas dadivosas e teorias práticas. Àqueles que pela experiência sabem que o caminho é profundamente solitário e, embora você receba ajuda ocasional de caminhantes mais experimentados e ao longo dos anos sirva de mais experiente para mais novos, de toda forma sabe que a trilha é única, pessoal e cheia de desvios e desvãos. Para esses aspirantes, quero “sulear” o foco que depois de muito burilar, trabalhar e despir se: resta aquilo que permanece.

 

As coisas devem ser aceitas e bem vindas de forma natural e consequente, até porque elas são em essência algum fruto, ou quem sabe uma nova semente.  Toda ideia ou necessidade de reconhecimento alheio dentro do trabalho espiritual é fruto de uma ilusão, daquela do qual sonhamos ser populares, referências,  insubstituíveis, no sentido de uma engrenagem perfeita, porém note que: todo sucesso enquanto duração é extremamente passageiro. Apegar-se ao resultado é esquecer-se dos atos laboriosos que levaram a ele. Toda peça de uma engrenagem defeituosa é facilmente substituída. Caso não seja, geralmente a engrenagem deixa de funcionar, torna-se obsoleta e depois lixo (reciclável ou não),  ou de tal modo nenhuma engrenagem resista a força maleável contínua e constante da água, e ainda assim nem engrenagem, nem peça sobressalente, nem o lixo reciclável ou não, tão pouco a água são aquilo que permanece.

 

A Verdadeira Vontade é um assunto que tem andado na moda.  Inclusive, o que pouco falam por aí, é que as pessoas querem viver muitas vezes a Grande Obra alheia, logo, a verdadeira vontade de outro que não a sua, um ideal que não o seu (por mais que você concorde com ele). Deixe-me avisar que a tal da grande obra e verdadeira vontade que pode ser medida, pensada, desejada como uma viagem, condição de vida, realização profissional é uma ilusão pelo simples fato dessa ideia-forma só existir na imaginação daquele que a sonha, e logo como você se identifica falsamente com a aparência disso, você (o sonhador) não se dá conta da finitude ilusória do tempo corroendo as esperanças daquilo que por própria natureza é transitória, pois em algum momento coexistimos entre transitoriedade, fases de tempo e espaço tal qual lugares. Entretanto, só uma realidade é sem tempo, sem nascimento, eternamente livre e sem formas. Talvez, e digo somente talvez, que a Grande Obra seja viver entre esses fluxos e refluxos, esses "lugares" de maneira sábia. Isto é, sem apegos, sem nomear, deixando a ilusão de pré-convenções desvanecer-se no lugar de impermanência da qual elas fazem parte, e a vontade que flui verdadeiramente entre os discernimentos seja verdadeira, até porque a meta da Grande Obra depois de realizada, é abandoná-la. Logo, ideias pré-concebidas, sentimentos, emoções, desejos e anseios, assim como quaisquer planos chamados ou idealizados como Verdadeira Vontade que, cessam com a morte física do sonhador, são transitórios e não representam de forma alguma aquilo que permanece.

 

A vida do aspirante é um processo de refinamento (tornar fino, apurar), de RE- (de novo), mais FINUS, (delicado, apurado).  Para aquele que aspira conseguir/obter o grande encontro no caminho deve prioritariamente de coragem e honestidade. Desapego e capacidade de renovação e reinvenção constantes, paciência e claro, muito silêncio. Não se trata de marketing pessoal, e sim de um assunto delicado e pessoal. As percepções devem ser trabalhadas com o afinco de artista e artesão, mergulhar fundo nas repetições que irão gerar uma Gnose. O trabalho da percepção se dá na reestruturação dos sentidos. Via de regra, temos uma cegueira, surdez e verborragia inata, sem falar na cabeça dura. Logo, o começo da depuração ainda é feito no sentido de filtrar as sobreposições de realidade da qual somos apegados, a imagem de uma imagem... Mas quem gera a imagem?  As estrelas vivem em suas órbitas, elas são únicas, muitas e variadas. E a colisão entre elas gera somente um incêndio na solidão. Unicamente o conhecimento direto é capaz de rasgar o véu do falso reconhecimento, ou véu da ignorância.

 

Toda nossa caminhada se resume numa encruzilhada, num ponto de encontros. Lá, três estados de nossa consciência se desgarram mesmo por alguns instantes de nossos cinco "invólucros, capas ou limites" corporais. Nessa encruzilhada há uma Realidade que existe por si mesma e que constitui a base da nossa consciência do ego.

Essa Realidade é conhecedora e testemunha em todos os estados de consciência - vigília, sonho e sono sem sonhos. Ela está consciente da presença ou da ausência da mente e suas funções.

A Realidade vê tudo pela sua própria luz. Nas suas proximidades, ela ilumina a escuridão. Ninguém além de ti pode vê-la, até porque na esfera "Eu sou em todo lugar o centro, como ela, a circunferência, não é encontrada em lugar algum."

A Realidade permeia o universo, mas ninguém pode penetrá-la. Ela brilha por si mesma, muitos a clamam e a veneram, mas é a Luz quem vai.

Graças à Sua presença, o corpo, os sentidos, a mente e o intelecto se aplicam às suas respectivas funções, sua natureza é a eterna consciência. Ela conhece todas as coisas, da consciência, do ego e do próprio corpo.

É o conhecedor(a) do prazer e da dor, e dos objetos dos sentidos. Conhece tudo objetivamente.

Essa Realidade possui muitos nomes. É a própria consciência e reflete no seu esplendor fascinante, como o ouro velho do Sol. Pela sua luz o universo é revelado. Ela não conhece o nascimento nem a morte. Não evolui, nem declina. É imutável, eterno(a). Não se dissolve quando o corpo se dissolve.  Ela é permanente. É aquilo que permanece em todas as instâncias da impermanência e nesse ponto, nessa encruzilhada, se você for o que resta desse encontro: você é aquilo que permanece.

 

Frater Hoor

 

 

ps - Sulear, na Linguística Aplicada, significa redirecionar a natureza da formulação dos problemas de pesquisa e participar socialmente a partir de trabalhos sobre sexo e gênero, racismo, proletarização do professor, a exclusão e o ensino na escola pública, a interculturalidade na produção de textos escolares, na formação de docentes, nos currículos da escola. Temas estes atraentes para linguistas aplicados que querem olhar, com olhos do Sul, para o Sul, de uma posição de vantagem porque é fronteiriça e ao mesmo tempo exterior, ocupando, assim, uma terceira, diferente e privilegiada posição

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