Despir-se




 

Despir-se é um ato de extrema complexidade.

Numa sociedade forjada pela cultura judaico-cristã, despir-se tornou-se um ato pudico para a maioria dos homens e mulheres. Despir-se é um ato de extrema complexidade, pois revela o que temos de mais íntimo, nosso templo, nosso veículo. Precisa-se de muita ousadia para se mostrar como veio ao mundo, para mostrar as imperfeições que não se enquadram nos padrões almejados, que aprendemos por força de repetição desde a infância. Despir-se é um ato de coragem! E que coragem!

Você deve estar estranhando esse discurso aparentemente moralista vindo de uma Aspirante à Thelema, ainda mais depois de um título tão convidativo. Aposto que vislumbrou encontrar um texto com referências sexuais, já que temas que envolvem tal conotação mágicka são instigáveis e por isso tão pesquisados e deslumbrados por grande parte dos interessados por Thelema. Para a sua decepção irei abordar um tema que é o “calcanhar de Aquiles” de todo Aspirante à Santa Ordem: o Ego. 

“Em vez de ser guiado por um Gênio Superior, a pessoa na verdade está à mercê das ‘vozes’ e valores infantis, conhecidos como as tagarelices do cérebro. Isso não causa apenas indevidos sofrimentos e decepções individuais, mas também provoca uma parada por completo em qualquer progresso real nas artes e nas ciências teúrgicas.” (REGARDIE, 17)

O verbo despir[1] remete-me prontamente aos Mitos de Descida de Inanna e da Deusa Mãe ao Submundo, que por sinal possuem muitas semelhanças entre si e ilustram muito bem o objetivo do texto, que é abordar o processo iniciático proposto na Primeira Ordem do Sistema da A.’.A.’., assim chamada de Golden Dawn, o trabalho do Homem da Terra, cujo objetivo é a purificação do Ego. 

Prosseguirei com uma breve apresentação dos mitos, para em seguida analisá-los, no intuito de demonstrar as simbologias iniciáticas universais presentes em ambos, e por fim, compará-las ao processo de purificação do ego, imprescindível para que a verdadeira iniciação aconteça.


O Mito da descida de Inanna ao Submundo

 

"Do 'grande acima', ela dirigiu sua mente para o 'grande abaixo'...”

“Minha senhora deixou o céu, deixou a terra,

Ao mundo inferior ela desceu...”

(WOLKSTEIN e KRAMER, 59)


Inanna é uma deusa do panteão sumério relacionada ao amor, ao sexo e à guerra, sendo também conhecida como Isthar na Babilônia.

Data-se o surgimento do mito há aproximadamente 5.500 anos na forma de um poema na Mesopotâmia[2] inscrito em tábuas de barro, e conta a jornada de Inanna (Isthar) ao submundo para visitar sua irmã Ereshkigal, que se tornara recentemente viúva.

Logo na chegada ao submundo Inanna deparou-se com o guardião do primeiro portal, e de forma imperativa exigiu sua entrada dizendo que ali estava para testemunhar os ritos funerários do Touro do Céu, consorte de Ereshkigal. Com tal notícia, colericamente, Ereshkigal ordenou que os sete portões do Mundo Inferior fossem trancados, e que Inanna só poderia passar por eles, caso deixasse uma peça de seus adornos reais em cada um.

Inanna chegou à sua irmã, despida e quase desfalecida. Desnuda, ela foi conduzida ao trono, onde se curvou, e os sete juízes do mundo inferior, os Anunáqui, sentados diante do trono de Ereshkigal, miraram-na com julgamento. Após Inanna deparar-se com os olhos da morte, Ereshkigal a dominou e a transformou em cadáver, pendurando-a de cabeça para baixo em um gancho na parede.


“Anunáqui, os juízes do submundo, a cercaram.

Eles julgaram contra ela.

Então Ereshkigal fixou-se em Inanna, o olho da morte.

Ela falou contra ela a palavra de ira.

Ela proferiu contra ela o grito de culpa que a atingiu.

Inanna foi transformada em cadáver

Um pedaço de carne podre

E pendurado em um gancho na parede”

(WOLKSTEIN e KRAMER, 60)

 

Sabendo da possibilidade de não retornar do submundo, Inanna havia instruído sua fiel escudeira Ninshubur sobre como ajudá-la caso ela não voltasse em três dias. A serva pediu ajuda ao pai de Inanna, o deus Enki, que logo enviou dois gallas (demônios andrógenos criados por ele) para resgatá-la, e devolvê-la à terra. Os demônios entraram no submundo “como moscas” que, passando despercebidos pelos portais, foram ao encontro de Ereshkigal. Ao verem a rainha dos mortos angustiada pela perda de seu consorte, logo prestaram-lhe acolhimento à sua dor, e Ereshkigal por gratidão os ofereceu o que desejassem. Os gallas quiseram o cadáver de Inanna, e então, a deram o pão e a água da vida, e assim ela reviveu. Porém, ela só poderia sair definitivamente do submundo com a condição de que alguém a substituísse. Após algumas tentativas sem sucesso, Inanna ao encontrar sua grande paixão, o deus Damuzi, que não demonstrava estar de luto, se enfureceu e decidiu entregá-lo[3].

 

Mito da descida da Deusa Mãe às Terras Baixas

 

A Deusa Mãe, que solucionava todos os mistérios, resolveu viajar às Terras Baixas para conhecer a Morte. Ao chegar foi recebida pelos guardiões dos portais que logo a desafiaram, ordenando-a que retirasse seus trajes e suas joias, pois nada ela poderia levar àquelas terras. Assim, ela despiu-se de suas roupas, de suas joias e foi amarrada, como acontecia a todos que entravam nos reinos da Morte.

Impressionada com sua beleza, a própria Morte ajoelhou-se, e beijando os pés da deusa, disse:

 Abençoados sejam esses pés que te trouxeram por estes caminhos. Permanece comigo, mas deixa-me pôr minha mão fria sobre teu coração’.

E ela respondeu: ‘Eu não te amo. Por que fazes com que todas as coisas que eu amo e que me alegram se apaguem e morram?’

‘Dama’, respondeu a Morte, ‘isto é, a idade e o destino, contra os quais não sou de nenhuma ajuda. A idade faz com que todas as coisas feneçam; mas, quando o homem morre ao fim de seu tempo, eu lhe dou descanso e paz e força para que ele possa retornar. Mas tu és adorável. Não retornes; permanece comigo.’

Mas ela respondeu: ‘Eu não te amo’.

Então a Morte disse: ‘Como não recebes minha mão em teu coração, receberás o açoite da morte’.

‘Esse é o destino, que seja cumprido’, disse ela, ajoelhando-se.

A Morte açoitou-a e ela gritou: ‘Conheço os sofrimentos do amor’.

E a Morte disse: ‘Abençoada sejas’ e lhe deu o beijo quíntuplo, dizendo: ‘Que possas atingir a felicidade e o conhecimento’.”

E assim, a Morte lhe contou todos os mistérios e a deusa lhe ensinou todas as magias, e eles se amaram e se tornaram Um.

“...sem amor[4] você não pode nascer e eis toda a magia.”[5]

Agora com os dois mitos apresentados, em síntese, podemos verificar que ambos carregam nas entrelinhas símbolos e arquétipos da jornada de purificação do ego do Aspirante em busca da sua completude. Nesse caso, as deusas não estão “inteiras” e se percebem vulneráveis ao se depararem com suas contrapartes obscuras e desconhecidas nas profundezas do inconsciente. Durante o percurso, elas vão se despojando das roupagens do ego que não lhe cabem mais, precisando aceitar tal condição para seguirem a diante, até se notarem totalmente despidas, sendo a nudez a representação de suas próprias naturezas, ou seja, o que permanece. Então, sem alternativas, rendidas à morte, elas se entregam ao ato de comunhão com a mesma, concebendo uma nova vida, que as tornam “completas”, e conscientes de si.

 

“Inanna e Ereshkigal, as duas irmãs, luz e trevas respectivamente, representam, juntas — nos termos da antiga simbologia —, a mesma deusa dividida em dois aspectos; seu confronto resume todo o sentido do difícil caminho de provas. O herói, deus ou deusa, homem ou mulher, a figura de um mito ou o sonhador num sonho, descobre e assimila seu oposto (seu próprio eu insuspeitado), quer engolindo-o, quer sendo engolido por ele. Uma a uma, as resistências vão sendo quebradas. Ele deve deixar de lado o orgulho, a virtude, a beleza e a vida e inclinar-se ou submeter-se aos desígnios do absolutamente intolerável. Então, descobre que ele e seu oposto são, não de espécies diferentes, mas de uma mesma carne.” (CAMPBELL, 58)

 

No mito de descida de Inanna ao submundo, os sete portais possuem diversas interpretações simbólicas e iniciáticas. O número sete carrega inúmeras conotações místicas e ocultas, estando presente inclusive num dos principais símbolos thelêmicos, o selo de Babalon ou flor de Waratah. No entanto, no texto os sete portais podem ser relacionados aos sete chackras, onde cada peça de roupa ou adorno real é referente às funções e disfunções de cada um deles. Representam também, estados de consciência diferentes, que são alcançados no decorrer do percurso iniciático, e analogamente podemos referenciar aos estados de consciência dos graus iniciáticos pertinentes às sephiroth na Árvore da Vida (veremos adiante). Além disso, ouso ainda relacionar os sete portais, ao processo alquímico contido na fórmula VITRIOL, que possui sete letras e significa “Visita Interiora Terrae, Rectificando, Invenies Occultum Lapidem” (Visita o Centro da terra, Retificando-te, Encontrarás a Pedra Escondida).

Continuando, Inanna, depois de morta, foi pendurada de cabeça para baixo em um gancho o que facilmente pode ser reportado ao Atu XII do Tarot de Thoth, O Dependurado, que é um trunfo tipicamente iniciático, que simboliza a rendição à Luz Interna, aceitando a voz do Sagrado Anjo Guardião. O Atu XII é representativo nos graus de Probacionista e Dominus Liminis, pois demonstra a inversão, ou mudança de perspectiva que acompanha o processo de transição de ambos os graus, em níveis conscienciais diferentes.

O mito, além disso, diz que a deusa retorna à vida após ser alimentada por pão e água, nitidamente uma alusão aos elementos alquímicos da comunhão gnóstica. Inanna num ato de fúria, entrega seu consorte para substituí-la, simbolizando que em decorrência de uma catarse ela desapega das paixões em prol da liberdade.

Por fim, a narrativa claramente evidencia grande semelhança ao mito mais conhecido do planeta, a Paixão de Cristo, cujo trecho do Credo Apostólico explicita: “...desceu à Mansão dos Mortos; Ressuscitou ao terceiro dia...”. O número três, assim como o sete, é um número sagrado que agrega inúmeras simbologias. Ele é o resultado da soma da unidade com a dualidade, dando origem à forma. Representa a Tríade Superna, Kether, Chokmah e Binah, sendo esta última a terceira sephirah relacionada ao princípio feminino, à Grande Mãe criadora. O três simboliza a Santíssima Trindade, o Pai, o Filho e Espírito Santo, ou ainda, o Pai, a Mãe e o Filho, e neste caso, em especial, podemos correlacionar o três, ao produto da União do Aspirante ao SAG.

No mito de descida da Deusa Mãe, ressaltam-se três elementos: a corda/corrente, o açoite e o beijo quíntuplo. A corda/corrente é relacionada ao Sal alquímico, ligado ao elemento Água, e à característica da fixidez. Simboliza o ato de controlar a dispersão e restringir qualquer divagação. O açoite relaciona-se ao Enxofre alquímico, ligado ao elemento Fogo, e representa a energia ativa, tendo como característica, a excitação, o movimento. Simbolicamente serve para excitar nossas naturezas dormentes e manter intensa nossa Aspiração. E o beijo refere-se ao sopro da (nova) vida, onde o quíntuplo é a expressão dos cinco elementos: Terra, Ar, Água, Fogo e Espírito, que constituem o ser humano, o pentagrama em sua representação do microcosmo; ou seja, o beijo quíntuplo representa o ato de gnose através do casamento alquímico.


“No jardim de beijos imortais. Ó tu Unidade brilhante, resplandeça! Faz Tua boca uma papoula de ópio, que um beijo é a chave para o sono infinito e lúcido, o sono de Shi-loh-am.”

(Liber LXV - Cap. IV, v.9)

“A boca do Adepto, o órgão pelo qual ele se alimenta, expressa seus pensamentos, e simboliza sua paixão: pelo beijo na boca que significa sua rendição ao Anjo, o ato do casamento, e esta é a chave para o infinito e lúcido sono.”

(Liber LXV - Cap. IV, comentário v. 9)

 

Finalizando a análise interpretativa dos mitos, dos pontos de vista simbólico e iniciático, redireciono o texto para a Santa Ordem, no qual buscarei explicar um pouco do Sistema da A.’.A.’. e apresentar como se procede a purificação do ego na jornada do Aspirante, demostrando alegoricamente como ele se comporta durante o treinamento mágicko.

Na A.’.A.’. cada grau possui um tipo de trabalho, com seus requisitos e pré-requisitos, e quase todos os graus são relacionados à uma sephiroth da Árvore da Vida, cuja atribuição de cada sephirah dita a tarefa a ser feita de acordo com o estado de consciência do grau ao qual se relaciona. Já os caminhos entre as sephiroth influenciam diretamente no trabalho das mesmas, por serem meios de alcançar a mudança que a consciência necessita para desenvolver tal percepção e vivência nos respectivos graus.

Não existe mudança de consciência sem o treinamento para a apuração do ego, e na Santa Ordem esse processo acontece nos graus elementares: Neófito (terra), Zelator (Ar), Praticus (Água), Philosophus (Fogo) e Dominus Liminis[6] (Espírito); com o objetivo de preparar o Aspirante ao Conhecimento e Conversação do SAG, vivenciado no Adeptado, na Segunda Ordem, a Rosa-Cruz — em Tiphareth, o Sol da Alma.

O sistema cabalístico com suas diversas escolas e discursos iniciáticos, aborda muitas nuances e interpretações quanto aos processos espirituais vivenciados no decorrer da Árvore da Vida. Conforme a Tradição Esotérica Ocidental, na Árvore da Vida podemos associar o Espírito à Kether, a Individualidade à Chokman e Binah, a Alma em seu aspecto superior (mente abstrata e concreta) ao triângulo que abrange Geburah, Chesed e Tiphareth, a Alma em seu aspecto inferior (emoções abstratas e concretas) ao triângulo que abrange Netzach, Hod e Yesod, onde atua a personalidade, e os corpos físico e etérico[7] à Malkut.

Em síntese, o Espírito é eterno, e age através da Individualidade que por sua vez torna a sua “vontade” conhecida por meio da personalidade. Assim acima como abaixo, certo? Teoricamente a personalidade deveria agir como uma projeção fidedigna da Individualidade num plano inferior, mas não. Por causa da raptura que resultou na divisão das polaridades, a comunicação se perdeu e a personalidade passou a se manifestar de maneira dessintonizada, desenvolvendo consciência e identidade próprias. Contudo, a personalidade é o único meio de adquirir experiência no mundo físico, e é através dela, com a colaboração efetiva do ego, que iremos refazer o caminho no sentido oposto em busca de se reconectar à essa Individualidade, em outras palavras, reencontrar a Unidade.

Recapitulando, o corpo físico está em Malkut, a personalidade está no triângulo que abrange as sephiroth, Netzach, Hod e Yesod, relativas aos graus de Neófito, Zelator, Praticus e Philosophus, respectivamente, e são as quatro sephiroth que compõe a cruz dos elementos. Os graus elementares, portanto, só se completam com o grau de Dominus Liminis que não ocupa nenhuma sephiroth, e representa o Espírito, o quinto elemento que dá origem ao pentagrama.


“Isto é dos 4: existe um quinto que é invisível, & ali sou Eu como um bebê em um ovo.”

(Liber AL, Cap. II, v.49)


Dentre controvérsias, ouso dizer que o trabalho de purificação do ego, mesmo que indiretamente, inicia-se no Probacionato[8], onde o Aspirante sem ter qualquer percepção disso, se depara, superficialmente, com os ordálios dos graus elementares, como uma pequena amostragem do que ele irá encontrar pela frente.

                É durante o Probacionato que geralmente o ego tende a superinflar, e aspectos megalomaníacos podem vir a despertar, levando o probacionista à ilusão de superpoder, superioridade, auto importância e autossuficiência, o que implica numa grande confusão na consecução do objetivo do grau, que ao invés do Aspirante obter a percepção de se ver no ponto de vista do Sol, como centro do seu próprio sistema, ele se vê como “centro do mundo” achando que este gira ao seu redor.

O processo do despertar da consciência para reconhecer-se no ponto de vista do Sol é o primeiro passo para começar a se despir das linhas da marionete que antes não percebia ser. A partir daí, efetivamente, tudo começa.

Como neófito, no primeiro grau elemental, o peso da inércia do elemento terra começa a incomodar e a conflitar com a dispersão, o sentimentalismo, a excitação e a confusão, que são projeções dos ordálios dos outros graus elementares, só que experimentados num nível de consciência ainda muito “denso”. Esse é um dos motivos que o principal treinamento do Neofitado é adquirir o domínio do Plano Astral, mas não se engane, pois é ainda aquele Plano Astral Inferior diretamente conectado ao nosso Corpo Etérico.

 Em Malkut, tudo que é terreno salta aos olhos. Os cinco sentidos tornam-se mais apurados, e as múltiplas sensações confundem e desviam do desejado prumo. Com o tino mais aguçado, os contatos com Nephesh, a alma animal incontrolável, é por vezes assustadora. Encontrar o equilíbrio desnorteia o ego, que passa a sugestionar percepções ilusórias no objetivo de se dotar de razões, daquelas que nem ele mesmo conhece, sequer vivenciou. Ora, em terra de cego quem tem olho[9] é rei, não é verdade? Até dar-se conta que a pouca luz que ele enxerga ainda não é suficiente para enxergar a Si mesmo.

O desafio de educar o ego, passa da teoria à prática, à medida que Nephesh começa a “mostrar os dentes” e dizer para que veio, atazanando o consciente e o inconsciente[10], e com isso, desperta-se a necessidade de render-se a ação de promover mudanças: como diz a carta nove de bastões do Tarot de Thoth, mudança é estabilidade. Ou seja, se você ficar parado, agarrado a toda aquela tranqueira emocional, se perderá no processo, girando no mesmo lugar que nem parafuso, ou mais perdido do que cego em tiroteio: caramba, “não sou mais rei”!

Lembra que você precisou despir-se de sua coroa[11] para alcançar o equilíbrio que buscou com tanto esmero? Agora, você é um mero plebeu reencontrando nas esquinas dos pensamentos que não param de divagar, os fantasmas que se libertam do seu inconsciente. Em cada fantasma esbarrado, emerge uma surpresa, e com o tempo você percebe que grande parte delas estavam guardadas e esquecidas na mesma caixinha, bem escondida nas profundezas do seu instinto de sobrevivência, na energia que impulsiona a vida: a libido[12]. Nesse caso Freud explica, com a ajuda de Thanatos e Eros.

Como é custoso manter controle do veículo do nosso sistema. A libido é móvel, ativa, como o impulso de morte que restaura a vida ciclicamente: um sempre buscando o outro. Vida, morte, putrefação e vida. Aproveite esse impulso e dispa-se.

Em alguns momentos, viver no mental parece trazer algum conforto, seja pela virtude do intelecto, seja pelo (ilusório) bônus da fuga de agir no presente, mas por outro lado, essa fuga leva ao ônus de viajar a camadas do inconsciente, que ativadas por gatilhos, externos ou internos, nos levam a reações emocionais violentas e desequilibradas. Razão e emoção passam a agitar o ego ao agirem em fluxos contrários. Ficamos à flor da pele, levamos tudo para o lado pessoal, a mania de perseguição nos persegue: a comunicação se torna um desafio, parecemos estar sob a influência de Mercúrio retrógado, vacilamos o tempo inteiro. Você já sentiu raiva de sentir raiva? 

É extremamente difícil e doloroso perceber o próprio temperamento, enxergar os defeitos, os vícios, expiar os medos, os traumas, mas reconhecer as reais qualidades e virtudes têm o mesmo nível de dificuldade, contudo, é um treinamento recompensador. É prazeroso admitir que perfeição não existe, que pode-se errar, e que vou errar; e está tudo bem! Qual o problema em ser imprevisível, em mudar de ideias e atitudes? O Universo está em constante mudança, mutação, transformação, e eu e você, como projeções microcósmicas dele, também.

Aproximar-se de sua verdadeira natureza é ter consciência que vai causar estranheza aos que se acostumaram com suas facetas mais genéricas, e vice-versa. Então, iremos incomodar e seremos muito incomodados, e a virtude está na Santa Paciência em driblar as antipatias e se atentar às seduções das simpatias, que nem sempre são tão simpáticas assim. Incomodar faz parte, sendo que por vezes é até positivo. Há maior incômodo do que mostrar imparcialidade, serenidade ou mesmo frieza, quando o que esperam são reações tempestuosas? Em falar em tempestade, a “Morada de Deus” está aberta aos corajosos que procuram abrigo “orando pelo fogo de Deus que tudo aniquila”[13], mas dispa-se antes de entrar e quando sair faça como Inanna ao deixar o submundo, desapegue de suas paixões em prol da liberdade que te espera.

Liberdade? E que liberdade é essa? É libertar-se das artimanhas do ego, que te prendem a quem Você não é. É liberta-se do comodismo, das futilidades, das ilusões de controle, de prazer, de poder.

No entanto, conhecimento é poder! Mas, já parou para pensar que o único poder que temos é sobre nós mesmos? Então, prefiro dizer que autoconhecimento é poder. Só nos empoderamos do nosso corpo, da nossa fala, de nossas ações e reações, e mesmo assim, cometemos tantas falhas. Alcançar a destreza de silenciar a confusão interna, será sempre um desafio, pois o ego continuará pregando peças, jogando contra às nossas Aspirações. Encontrar uma conciliação entre ambos exige muita dedicação, e não haverá “gênios” com suas lâmpadas mágicas que farão a magia acontecer.

Sendo assim, tudo que foi relatado, objetivou demonstrar o comportamento do ego perante os treinamentos que visam educá-lo. As ações e reações, internas e externas do Aspirante, resultantes do despir das camadas do ego, são evidências de que as transformações ocorrem, paradigmas são mudados, o que só atesta que o Sistema funciona.

Geralmente há uma falsa ideia de aniquilação do ego no trabalho da Santa Ordem, e desse modo, pode-se concluir que a melhor definição seria Educação. O ego é nosso veículo, sem ele simplesmente não existimos e por isso deverá ser sempre nosso aliado, pois dependemos da colaboração dele para realizar a Grande Obra. 

Estamos chegando ao fim deste artigo, e muitos devem estar se perguntando qual a finalidade dos Mitos, de descida de Inanna e da Grande Mãe ao submundo, terem sido abordados e analisados, mas nada foi em vão. Houve o intuito de assinalar, para aqueles que tem olhos para ver, que há inúmeros símbolos universais ali contidos que podem ser facilmente identificados na bibliografia thelêmica, provando que a linguagem muda ao longo do tempo, as histórias ganham novas versões ressignificadas, porém o contexto iniciático permanece e vai se replicando através dos Aeons. 

O processo de purificação do ego compartilha desses símbolos e signos universais e, tanto nos mitos como na A.’.A.’., acontece primeiro a preparação do ego, para em seguida iniciar a ação progressiva de purificação do mesmo, em que na Santa Ordem trata-se de um exercício/treinamento espiritual de autoconhecimento, num contínuo trabalho de percepção, que nos leva ao encontro da nossa contraparte desconhecida, recepcionando-a, acolhendo-a, sendo conivente com nossa luz e sombra[14].    

Só quem vivencia ou vivenciou o processo consegue identificar e correlacionar as várias simbologias mencionadas nos mitos, até mesmo, alguns “pulos do gato” que são providenciais para detectar e/ou confirmar percepções comuns a todos que tiveram tais experimentações.

Um dos mais relevantes símbolos universais inerente à várias escolas iniciáticas, é a passagem pelo rito funerário, e na A.’.A.’. isso pode ser experienciado de forma ritualística em determinados graus, e sobretudo, num processo contínuo, cíclico, de metanoia e catarse, morte e renascimento, como um mecanismo de expurgo para libertarmo-nos de tudo que não pertence à nossa natureza e que nos foi imposto assim que nascemos, com o objetivo de nos aproximar da nossa verdadeira essência que é espiritual, pura.

Por fim, o Aspirante tendo alcançado o estágio de consciência necessário após concluir o processo de purificação do ego, sofre a experiência de morte e renascimento, selando o marco de passagem para a Segunda Ordem, a Rosa-Cruz, onde através do ato de comunicação ou casamento alquímico com sua consciência superior, o SAG, ele possa conceber a iluminação e a consecução de que a morte não existe, isto é, que tem aquilo que permanece, que é infinito, e esse que precisa ser o foco da agência da Aspiração.


“Compara, ó meu Filho, com esta Doutrina aquela que te foi ensinada no Santuário da Gnose quanto à Morte do Justo; e aprende mais que estes são apenas Casos particulares de uma Fórmula Universal.” (Liber Aleph, Cap. 18)


 Aspirante, não tenha medo de se despir. Comece primeiro investigando suas várias camadas “de roupas”, num exercício constante de percepção de Si e do mundo, de Si no mundo, para depois ir despindo-as aos poucos. Estamos acostumados a nos mascarar [15] e atuar com diversos personagens. É natural. Mas isso, sem que percebamos, nos faz acumular roupagens que acabam por esconder nossa verdadeira face: camufla-se a insegurança, a fragilidade, a tristeza, a ignorância, ao mesmo tempo que também encobre-se o olhar pueril, a alegria genuína, os desejo mais viscerais, e esconde-se a coragem, a bondade, a pureza, fazendo-se de tudo para se encaixar nos moldes socialmente aceitos ou simplesmente, agir por instinto de sobrevivência na selva de pedras.

 Deixe o ego ser quem ele quer ser, apenas continue o educando. Tenha em mente que o maior inimigo do ego (nosso maior inimigo), chama-se Apego. Tendemos a nos apegar no que é bom e principalmente no que é ruim, já percebeu? Tudo porque ainda preservamos inconscientemente a ideia de morte imposta no velho Aeon, e por isso, temos dificuldade de deixar ir, desapegar.

Despir-se é um ato de extrema complexidade, e ao mesmo tempo é grandioso e enriquecedor olhar para si sem filtros, e perceber que toda a roupagem despida não tinha mais serventia, se tornou obsoleta, pesada, tóxica. Removê-la, mais do que necessário é primordial para ir ao encontro do que se busca alcançar: Você.




[1]Pelo dicionário Online de Português, Despir-se significa tirar do corpo... em sentido figurado significa não ter/dar atenção a; colocar de lado; largar/deixar. A origem da palavra despir vem do De + (do português arcaico) espir, pelo latim expedire, "desembaraçar".

[2] O mito original, tendo como referência a deusa Inanna, foi escrito nos moldes de um poema contendo 415 linhas. Contudo, a versão acadiana da descida de Ishtar, da Babilônia, é contada em 145 linhas. Sugere-se que o motivo da diferença era a influência do patriarcado, que diminuiu o poder e a importância dessa deusa durante o 2º milênio aC.

[3] O mito continua com Geshtinanna, irmã de Dumuzi (Tammuz), se tornando voluntária para ser substituta de seu irmão e, no final, ficou decidido que Dumuzi e sua irmã, cada um, passaria metade do ano no submundo e a outra metade na terra. Assim como o mito grego de Perséfone e Deméter, este evento é usado para explicar a mudança das estações, o que é irrelevante no contexto desse ensaio. 

[4] Referência à fórmula Amor sob Vontade.

[5] Os trechos em “itálico” foram tirados do Livro A Bruxaria Hoje de Gerald Gardner.

[6]O Grau de Dominus Liminis, não é relacionado à nenhuma sephiroh da Árvore da Vida. Ele situa-se no caminho de Samekh (Atu XIV – A Arte), que liga as sephiroth Yesod e Tiphareth, no caminho do Pilar do Meio, situando-se no limiar do Véu de Parroketh. O Dominus Liminis está para a Ordem da Rosa-Cruz, assim como o Probacionato está para a Ordem da Golden Dawn.

[7] O corpo etérico é o mediador das forças da vida animal, as energias que dão força ao mundo. É no corpo etérico onde situam-se os chackras, que são centros de energias que atuam conectando os níveis interiores com o corpo físico através do sistema endócrino.

[8] No final do Probacionato, após ter conseguido realizar a Grande Obra do seu grau, ele atravessa o véu de entrada para a Árvore da Vida chamado Portae ou Porta, Portal, executando o ritual que configura o acesso a Malkut, a primeira sephirah elemental, relacionada ao elemento terra. Pode-se perceber nos mitos de descida ao submundo, visivelmente, elementos que são encontrados nesse ritual de passagem, Liber THROA, mais conhecido como Liber Pyramidos – Sub Figura DCLXXI (671). Porém, o mesmo utiliza como referência o Mito de Osiris, o deus Morto. Outro ritual que enfatiza o Rito Funerário na concepção iniciática, utilizando nesse caso o panteão thelêmico, é o Liber Cadaveris – Ritual CXX chamado de “A Passagem pelo Tuat”, que marca a transição do grau de Neófito para o grau de Zelator.

[9] O neófito vai das trevas em direção à luz.

[10] O sistema junguiano se refere ao consciente e ao inconsciente como polos diferentes que se complementam atuando num fluxo constante de energia, ou comunicação.

[11] Referência à sephirah de Malkut, o Reino, relativo ao grau de Neófito e, também à prova física requerida para avançar ao grau de Zelator.

[12] Segundo Freud, a libido não está relacionada somente com a sexualidade, sendo o desejo de criar vida. Favorece a produtividade e a construção através da criatividade, e por isso está viva nas artes e atividades culturais. Ele chega a equivalê-la ao conceito grego de Eros, que não é somente o desejo sexual, mas abrange toda a força vital e vontade de viver. Já Jung adota a definição de libido, em geral, como sendo toda a energia psíquica/mental de um homem, considerando essa energia semelhante ao conceito oriental do chi e/ou do prana.

[13] Referência ao Liber Liber Turris vel Domus Dei – Sub Figura XVI.

[14] Quando se fala em sombra tende-se a levar para uma conotação negativa, mas nem sempre as sombras são negativas. Lembre-se que positivo e negativo, bem e mal, são pontos de vista. Como estamos acostumados à definição de que “sombra” é algo escondido nas camadas mais profundas do Ser, com raízes fixas e profundas no inconsciente, e ao focar apenas nessa classificação, não nos damos conta de que o aspecto sombra pode estar na nossa cara, explícito nas nossas ações e inações, que por vezes não queremos ver ou não conseguimos ver, e com isso, sem devida atenção, gatilhos são ativados.

[15] Personalidade vem do latim persona, que significa máscara.


Referência Bibliográfica:

 CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Editora Cultrix-Pensamento, 1997.

CICERO, Chic e Sandra Tabatha Cicero. Essencial da Golden Dawn: Introdução à Alta Magia. Tradução: Marcos Malvezzi Leal e Martha Malvezzi Leal. São Paulo: Editora Madras, 2008.

CROWLEY, Aleister. Liber Aleph vel CXI, Cap. 18.

CROWLEY, Aleister. Liber AL ver Legis - Sub-Figura LLXX, Cap. II.

CROWLEY, Aleister. Liber Liber Cordis Cincti Serpente vel Adonai – Sub-Figura LXV, Cap. IV.

CROWLEY, Aleister. Liber Turris vel Domus Dei – Sub Figura XVI.

CROWLEY, Aleister. Liber ABA, Parte II – Magick: Teoria Elementar, Cap. IV.

FIELDING, Charles. A Cabala Prática. Tradução: Daniel Camarinha da Silva e Dulce Helena Pimentel da Silva. São Paulo: Editora Cultrix-Pensamento, 2010.

GARDNER, Gerald. A Bruxaria Hoje. Tradução: Julia Vidili. São Paulo: Editora Madras, 2003.

REGARDIE, Israel. Um Jardim de Romãs: Skrying na Árvore da Vida (Uma Introdução à Cabala).

REGARDIE, Israel. The Complete Golden Dawn System of Magic. Phoenix, Arizona: Falcon Press, 1984.

WOLKSTEIN, Diane e Samuel Noah Kramer. Queen of Heaven and Earth: Her stories and Hymns from Sumer. London: Rider, 1984.

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